quinta-feira, 31 de março de 2011

1000 cigarros

     Nessa nossa passagem pelo mundo vamos adquirindo conhecimento (grande parte inútil) e assim colecionamos as famosas "lições de vida". Todo mundo tem uma grande lição pra contar, casos dramáticos, alguns pouco prováveis, mas todos motivos de reflexão que nos fazem ter mais amor pela vida e agradecer por estarmos pisando nesse planeta.
     Lembro-me da primeira vez que o termo "lição de vida" finalmente fez sentido pra mim. Não foi nada cinematográfico, mas muito marcante, exatamente pela simplicidade do episódio e a "loucura inspiradora" do personagem.
     Era uma tarde ensolarada na minha cidade natal. Eu ainda era um pirralho que acompanhava a minha mãe em suas idas pelo centro da cidade com a mão apoiada em seu ombro - como a minha mãe era alta naquela época - e a fazia resmungar de instante em instante por causa do peso que eu produzia e que provavelmente desequilibrava o seu andar elegante. Ô Deus! Abençõe a paciência das mães! Como eu fazia perguntas, como eu a tirava do sério e ainda conseguia ser tratado (quase) sempre com carinho. Confesso que se eu tivesse me criado eu teria dado uns belos sopapos pra eu tomar jeito!
     Mas voltando ao foco, lá estávamos eu e minha mãe adentrando o banco para resolver algumas pendências e a figura de um mendigo sentado na calçada chamou a nossa atenção. As pessoas o cumprimentavam, funcionários do banco, transeuntes avulsos e até mesmo outros mendigos, enfim, era um cara respeitado em seu meio. O fedor o antecipava. Unhas enormes, barba e cabelos grisalhos e totalmente desgrenhados. A pele negra, coberta por várias roupas sobrepostas,  às vezes tinha uma tonalidade cinza que ajudava a manter camuflada a sujeira impregnada e já incorporada do homem cuja idade era impossível precisar. Eu na minha inocência de menino o julgava com mais de 100 anos e esse também era o meu palpite para a idade do seu último banho. 
     Embora essas características fossem suficientes para notar a presença do indivíduo, outro fato chamava mais a atenção. O fétido homem trazia consigo uma saca, dessas que armazenam feijão, com 1/4 de sua capacidade cheia de bitucas de cigarro. Vez ou outra o homem despejava o conteúdo ali mesmo na calçada, tateava e escolhia com propriedade, levava o filtro usado até a boca e o acendia. Após duas ou três tragadas apagava o que restava do cigarro e o devolvia para a sua morada voltando a repetir o processo inúmeras vezes. Na saída do banco, minha mãe que era fumante - e quem não era nos anos 80? - se sensibilizou com o mendigo. Aproximou do homem e (numa atitude nobre para um fumante) retirou um cigarro novinho em folha e o ofereceu como quem oferece um pedaço de filé alto e suculento pra um retirante da seca que come farinha com charque. Sem nenhum sinal de abalo com a cena, o homem de olhar louco olhou pra minha mãe e disse: "Pra quê? Com tanto?", ou traduzindo: "Obrigado senhora, já tenho o suficiente aqui". A minha mãe sorriu surpresa com a atitude do mendigo e comentou com um cidadão que assistia tudo de soslaio: "Que lição de vida, hein?".